sábado, 4 de dezembro de 2010

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Era uma menina lúgubre. Fiquei certo disso no momento em que a avistei ao longe, sob uma chuva fraca, na primeira vez que a vi.
Sim, chovia. Não muito; o suficiente para me permitir sair de casa, e achava melhor assim, considerando-se meu estado de espírito eternamente perturbado — aridez me inquietava. A menina trazia as mãos vazias; nenhuma bolsa, nenhum celular, nenhum guarda-chuva.  Apenas esmalte escuro; de onde estava eu não poderia distinguir a cor. Numa persistência em tentar enxergar algo que não estava ali, nem em lugar algum, ela permanecia apenas imóvel, perecendo esperar que algo caísse junto com a água que vinha do céu. E não me notou. Melhor desse jeito — era muito nova para mim, mesmo com aquela expressão centenária e aqueles olhos cortantes. Ocupei-me então do que pude comprar numa baiuca tosca a dois quarteirões de casa: uma garrafa de vinho barato, agridoce, com gosto de tempos difíceis. Acendi (mais) um cigarro e logo me veio um garçom afetado dizer-me que senhor, é proibido fumar sob o toldo. Tentei argumentar, dizendo que não havia mais ninguém no bar, portanto, ninguém se incomodaria com a minha fumaça, e além disso, eu havia consumido bebida ali. Ele então disse mas senhor, é a nova lei, mas senhor, não fui em que ordenou, mas senhor, podemos levar uma multa, mas senhor daqui, mas senhor dali e mandei-o à puta que pariu. Peguei uma cadeira a dispus, melhor, a enfiei na calçada com uma irritação que efeito nenhum causaria e da qual eu não era capaz de me livrar. Sentei-me e lá permaneci, teimando em acender cigarros sob a chuva, vagamente notando os resmungos e murmúrios dos transeuntes que eu atrapalhava, vagamente me divertindo com eles, vagamente percebendo os carros na avenida, vagamente raciocinando, vagamente respirando, vagamente sendo.
Finalmente eu a notei me observando, mas procurei não sustentar seu olhar: sempre fui péssimo em flertes e, na maioria das tentativas, acabei por espantar todas as mulheres que um dia tentaram se aproximar e, principalmente, as que conseguiram; um espelho em cima da pia do meu banheiro começou, diariamente, a mostrar-me o motivo, portanto, lá fiquei, ignorando a menina, que ignorava a chuva que me ignorava, até que se acabasse meu vinho agridoce.
Quando eu enfim larguei da cadeira, passando a mão na barba que há tempos eu adquirira preguiça de fazer, segui em direção ao nada, mantendo no nada em que se encontrava minha mente a menina lúgubre.

7 comentários:

  1. Gosto do seu olhar árido/ácido que recorta o mundo com bisturi mas mãos de bêbado...

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  2. É sem querer.

    Gosto de como você consegue achar palavras, entre outras coisas, pois eu nunca sei o que dizer ao ler seus contos (razão dos meu comentários idiotas).

    "Árido" e "ácido" são palavras das quais gosto e que há muito são atribuídas a mim pelas pessoas erradas e melindradas, ainda que se encaixem muito bem em mim. Mas tendo sido ditas por você, agradeço.

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  3. Olhar árido/ácido e postura árida/ácida são diferentes. Seu texto mostra uma postura de vida diferente dos adjetivos anteriores: diria até "terna", o que é uma grandeza pois a lógica da reação seria ser ácido/árido...

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  4. Quando me referi às atribuições, esqueci-me de incluir que são feitas também na hora errada — é aí que você entra e por isso agradeci.

    Você é a segunda pessoa que me diz isso (que demonstro certa ternura) hoje. A diferença é que você falou sério.

    Tenho meus momentos de mansidão... e também os de azedia (como qualquer pedra teria). Mas, como você mesmo constatou, o produto das reações é geralmente contrário. Isso às vezes desnorteia, entretanto, é assim que me encontro.

    Descubro sempre em contrariedades e colisões um novo lar.

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  5. Não entendo a vergonha. Ambos estão ótimos.

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  6. Se é assim (e obrigada), posto o resto depois.

    E toda e qualquer semelhança é mera coincidência bábláblá.

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  7. Ah, e usei uma expressão sua. Vou colocar você nos créditos HAHAHA

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