segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

reminiscência

— Renato, o que é reminiscência? — perguntei-lhe enterrada na poltrona verde, rodeada de paredes cor de açúcar e tulipas semimortas. Observei o mundo externo pela janela do quarto andar enquanto durava o ocaso; apagava-se o céu, acendiam-se as lâmpadas e as estrelas. Condensava-se a água em torno de meu copo de chá gelado; o vidro suava e escorregava-me da mão.
— Ah, Cibele, vá procurar no dicionário... — Renato ralhou, mal-humorado, as mãos apoiadas sobre o balcão da cozinha; eu podia ver seu reflexo no vidro da janela ao alternar o foco de minha visão entre seu rosto e os postes e carrinhos de pipoca na avenida. Sua irritação era, provavelmente, culpa do chefe. Quase sempre era.
— Eu procurei — respondi-lhe concentrando minha visão mais na rua que em seu reflexo. Sinal verde, sinal amarelo, sinal vermelho, sinal verde, prostitutas, portas de aço, portas de vidro, látex azul, luzes de freio indo, faróis baixos vindo...
— E então?
— E então? O que?
— Não achou o significado? — ele ainda não havia tirado as mãos do balcão.
— Nada mais significativo que “recordação indecisa” ou “memória vaga”.
— Não é suficiente, não é mesmo? — Renato perguntou sarcasticamente, sabendo desde sempre a resposta. Já me conhecia.
— Não, não é. Ouça: reminiscência — disse-lhe e sorri sem olhá-lo. — Uma palavra robusta e estupefaciente. Aliás, lembro-me muito bem de quando você explicou-me o que significava “estupefaciente”; foi a melhor tarde da minha vida. Você agora acha que deixar-me com duas pequenas palavras impressas como “recordação vaga” é suficiente?
— Eu sou normal; penso que deveria ser o bastante — ele respondeu. — Você e suas manias. A fotografia intangível para definir sem dizer nada uma palavra que lhe toca ou enternece — zombou de mim.
— Você sabe ou não o que é reminiscência?
Renato encarou-me pelo vidro da janela e em seguida seu reflexo saiu da moldura. Ouvi atentamente seus passos pesados, satisfeita. Atingiu-me o ranger das portas dos guarda-roupas vetustos que abríamos e fechávamos indelicadamente, assim como o som da avidez — Renato estava a revirar nossos pertences. Assim que se findou o som, ouvi seus passos em direção à cozinha e em seguida à nossa poltrona verde.
Com certo mistério, ele sentou-se sobre a mesa de centro, à frente da poltrona, e entregou-me uma caixa retangular enquanto agarrava meu copo e o pousava serenamente ao seu lado. Sobre a caixa havia uma brilhante e loura pera que ele tratou de apanhar logo.
— Vamos, abra — ele encorajou, todo enigmas, e deu uma mordiscada na fruta, que era minha preferida. Apesar de observá-lo ser algo muito tentador, puxei a tampa, e veio a mim um cheiro de mofo, como o cheiro de livros anciãos. Renato a jogou sobre a mesa ao lado do cinzeiro de cobre.
Encarei o conteúdo da pequena arca. Aos poucos, certos objetos iam me prendendo a atenção; rochas de beira de praia que ainda cheiravam a sal e ferrugem, entradas de cinema datadas de cinco anos atrás, folhas pautadas onde se podia ler algum verso de um poema sem nome ou de uma música pouco conhecida, além de inúmeras fotografias que continham meu rosto (ou parte dele) num espaço e tempo em que eu não era capaz de me encaixar.
Subitamente minha visão se fez em flashes. Flashes amarelados como papel velho ou lâmpadas incandescentes. Sem razão, eu sentia êxtase e desencanto, exuberância e escassez. Renato, que me observava atentamente, abandonou ao lado do meu copo de chá, da tampa da caixa e do cinzeiro de cobre a metade que restava da pera e aproximou seu rosto do meu. Assim que seus lábios obtiveram os meus e senti o sabor familiar, doce e arenoso da fruta, me veio à mente a imagem de um dia de sol onde eu podia enxergar e apalpar o vento; ainda que a imagem pudesse, em alguma hipótese, ser memória, era também surrealmente imprecisa, irreal.
— Então isso é que é reminiscência? — perguntei a Renato, assim que a doçura arenosa abandonou-me a língua, admirada.
— Reminiscência... Sim, é isso. Visão oblíqua e elusiva, sentimento latente e esmagador — ele disse, e seus lábios se arquearam num sorriso meio surpreso, meio resignado. — Você tinha razão. Duas palavras impressas não são o bastante.



NA: Para quem já leu isso, reescrevi o texto
porque nunca me contento com a incompletude dele.

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