quinta-feira, 14 de junho de 2012

— Que há contigo? — perguntou. Como a conhecia, Cila não teve a impressão de que Clara não esperava resposta só por não ter permanecido ao pé da cama onde estava e foi manejando pela sala mesmo a cafeteira só nas sandálias e roupas de baixo.
— Não há nada — respondeu Cila. Nas paredes, todas próximas demais, já escorria a fumaça de seus cigarros de palha e cravo toda vez que se tomava um banho demasiado quente e demorado. Seus banhos eram quase todos demasiado quentes e demorados. Pensou na banheira pequena onde sempre se achava espaço para as duas e de onde só se saía quando a água já estava a gelar.
— Pareces cabisbaixa — retrucou Clara, e trouxe-lhe uma xícara de café, roubando-lhe um dos cigarros; pôs o cinzeiro entre as pernas, a fumaça lhe subia por entre os peitos pequenos, redondos, os poros despontando de frio.
— Encontro-me recostada à beira da cama. Como posso estar cabisbaixa? —disse-lhe Cila, puxando para si a perna que Clara não abraçava para sentir sua pele na dela mais que sempre; bebericou da xícara.
— Teus olhos. Estão fundos.
Permaneceram em silêncio. Cila comunicando com as pupilas o que estava a evitar dizer com as palavras.
— Diga-me — Clara tocou-lhe o braço.
— Estou a perder a vista.
— Deixe disso, conte-me o que há.
— Estou a perder a vista.
Clara não disse nada. Esperava, na realidade, que fosse Cila e um de seus melindres ou dramas. Cila contornou com os dedos finos as pernas e os dedos e as mãos e os cabelos e os seios e as pintas de Clara.
— Tenho a consciência em mim crescente de que, em breve, tão breve quanto um milésimo de segundo, porque tempo nenhum ao teu redor é bastante, não poderei mais analisar os teus centímetros a todo minuto de todo dia como pretendia, e iluminar-me com os pontos de luz que tem teu corpo, nem resfolegar quando surges nua na cozinha, nem observar-te enquanto te vestes, imaginando tuas curvas sob os panos.
— Deixe disso, não será nada. Venha às torradas, que te preparei o pequeno almoço — Clara agarrou-lhe os dedos, Cila a trouxe de volta para a cama.
— Deixe que te olhe. Quero que, dentre toda e qualquer imagem, seja a tua a permanecer mais nítida e viva e fugaz em minha memória. Deixe que te olhe.
E permaneceram em silêncio.

2 comentários:

  1. parecia mesmo que eu queria ler. agora quero ler de novo e de novo.

    há uma beleza intensa no texto, uma qualquer mágoa, duas vidas totalmente expostas em poucas palavras. não sei se o caso do casal lésbico, mas se fosse qualquer outro tipo, sentiria o mesmo sentimento de abandono que o amor tem me causado, assim, desde sempre.

    porque o amor (e seu texto me fez lembrar dele), o amor é abandono, o amor é sozinho, só nosso. fico feliz que um de meus nomes tenha caído nas letras de Ana.

    e diz pra sua Cila não se preocupar, que a Clara vai continuar bonita e pra sempre.

    (quase choro, quase choro)

    ResponderExcluir
  2. Juro ter sido o primeiro nome, como se surgisse por vontade própria.

    Que bom que gostou, porque mandei mais por ter sabido da sua leve curiosidade.

    ResponderExcluir